Aos 90 anos, Ives Gandra vira alvo de processo na OAB e é chamado de “golpista” por Moraes

Aos 90 anos, Ives Gandra vira alvo de processo na OAB e é chamado de “golpista” por Moraes

Jurista com 70 anos de carreira sofre ataque público do ministro e enfrenta acusação por defender interpretação antiga da Constituição

Ives Gandra Martins, um dos juristas mais renomados do Brasil e que participou da criação da Constituição de 1988, nunca imaginou que aos 90 anos enfrentaria um processo na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) simplesmente por expressar sua interpretação sobre a própria Constituição que ajudou a construir.

Desde 2023, ele responde a um processo disciplinar aberto a partir de uma denúncia feita pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Eles contestam a visão do jurista sobre o artigo 142 da Constituição — o famoso trecho que trata das Forças Armadas.

E como se não bastasse, na semana passada, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), lançou um ataque indireto, mas bem direcionado. Sem citar nomes, chamou de “golpistas” os juristas que defendem que as Forças Armadas poderiam atuar como poder moderador entre os Três Poderes — justamente a tese defendida há décadas por Gandra.

A tese que virou alvo de perseguição

Segundo Gandra, o artigo 142 permite, sim, que as Forças Armadas atuem como uma espécie de mediador, desde que sejam acionadas por um dos Poderes, em situações de conflito institucional. Ele sempre fez questão de dizer que isso não significa apoiar golpes ou rupturas democráticas. Pelo contrário: essa intervenção só ocorreria de forma legal, pontual e temporária.

O problema é que essa interpretação, defendida publicamente por ele desde os anos 1980, foi usada — muitas vezes de forma distorcida — por grupos políticos em 2022, após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições.

O processo na OAB, que havia sido arquivado em fevereiro de 2025, voltou à tona após recurso das entidades denunciantes. Agora, o caso está parado, sem prazo para decisão, depois que um dos conselheiros pediu mais tempo para analisar detalhes técnicos.

Moraes dispara: “Não são juristas, são golpistas”

Durante um julgamento no STF na semana passada, Moraes subiu o tom e, sem citar nomes, mandou seu recado:
— “O artigo 142 não tem absolutamente nada a ver com poder moderador, e os juristas que assim escrevem não são juristas, são golpistas.”

Nas redes e nos bastidores do mundo jurídico, ninguém teve dúvidas: o alvo era Ives Gandra.
— “Não me lembro de outro advogado que tenha defendido essa tese de forma tão pública”, comenta Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP.

Para ele, o processo e os ataques a Gandra revelam um país que está se afastando perigosamente dos princípios da própria Constituição.
— “Punir alguém por defender uma interpretação, concordemos ou não com ela, é algo absolutamente incompatível com qualquer democracia”, afirma.

“Calar juristas é destruir a democracia”, dizem especialistas

Adriano Soares da Costa, ex-juiz e especialista em Direito Eleitoral, também não escondeu sua indignação. Para ele, o papel da Suprema Corte deveria ser justamente proteger a Constituição, não perseguir quem a interpreta de forma diferente.
— “Querer adestrar advogados a dizer só o que convém ao poder é decretar o fim da liberdade de expressão e da própria advocacia”, dispara.

O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello reforçou a crítica:
— “O mestre Ives merece respeito absoluto. O que vemos aqui é mais um retrato das mazelas dessa República que tanto nos envergonha.”

A vereadora Janaina Paschoal (PP-SP) também lembrou que o próprio STF, inúmeras vezes, garantiu o direito à livre manifestação, até mesmo para quem defende pautas como a legalização das drogas e do aborto.
— “Ainda que ele estivesse errado, estaria protegido pela liberdade de cátedra e de expressão”, argumenta.

O jurista Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), foi direto:
— “Tentar transformar um debate jurídico em perseguição pessoal, ainda mais contra alguém com 90 anos, é um ataque brutal à liberdade acadêmica, à democracia e à própria história constitucional do país.”

A dor de ver o Brasil assim

Angela Gandra, filha do jurista, conta que, apesar de tudo, seu pai enfrenta a situação com serenidade. O que realmente o machuca é ver o país neste estado.
— “Dói muito mais nele ver a situação do país e do Judiciário do que esse processo em si. Ele vive em paz com sua consciência e diante de Deus”, relata.

Segundo ela, o pai não sente vergonha nem medo. Mas se entristece profundamente com o nível de injustiça a que o Brasil chegou.
— “Quando ele vê esse cenário, ele fala com força, porque não se conforma”, completa.

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