
Aposentada tem benefício reduzido a R$ 2 após fraudes e empréstimos forçados e processa oito bancos
Sem renda, com câncer e vivendo num cômodo minúsculo, Maria Lúcia enfrenta a depressão e o sistema financeiro que a levou ao colapso. Justiça agora é sua única esperança.
Aos 74 anos, viúva, com câncer e sem renda fixa, Maria Lúcia Mozes viu sua aposentadoria de dois salários mínimos se transformar em apenas R$ 2. Morando em um quartinho de dois metros quadrados em Salvador, ela decidiu enfrentar a máquina financeira que a arrastou para essa situação: entrou com um processo contra oito bancos ao mesmo tempo.
Diarista por décadas no Rio de Janeiro, Maria Lúcia viveu momentos tranquilos após conseguir se aposentar. A pensão somada ao benefício do INSS permitia pequenas viagens e uma vida modesta, mas digna. Tudo começou a desmoronar quando ela precisou de um empréstimo consignado para custear o tratamento de um câncer de mama.
A partir dali, uma avalanche de dívidas se formou. Entre 2023 e 2024, ela passou a ser vítima de fraudes, armadilhas financeiras e vendas casadas: contrataram em seu nome seguros de casa — mesmo sem ter imóvel próprio — e até seguro de viagem internacional, apesar de ela jamais ter saído do país.
Os descontos, feitos diretamente na aposentadoria, consumiram praticamente toda a sua renda. “Cheguei no banco e perguntei: ‘Eu nunca contratei isso, por que estão descontando?’. Eles diziam que era coisa do banco”, contou Maria Lúcia à CNN.
Sem condições de continuar no Rio, ela voltou para Salvador com ajuda de parentes. O sobrinho pagou a passagem e uma amiga lhe ofereceu abrigo: um minúsculo quarto conjugado com banheiro, sem geladeira, televisão ou fogão. As refeições, ela faz na casa de familiares.
“Antes eu vivia bem com dois salários mínimos. Podia comer bem, passear, viajar… De repente, mal dava para comprar comida. Foi um desespero”, desabafou.
Em agosto de 2024, seus advogados ajuizaram uma ação na Justiça com o argumento de superendividamento. O objetivo é interromper os descontos, buscar reparação pelos abusos e, quem sabe, devolver a ela uma vida minimamente digna.
Segundo o advogado Emanuel Pinheiro, o que aconteceu com Maria Lúcia é um caso clássico do que ele chama de “efeito bola de neve”: começa com um empréstimo, vem a portabilidade, o refinanciamento, a adição de serviços não solicitados e o ciclo se repete até a vítima ficar encurralada e completamente endividada.
A legislação do INSS impõe limites: os descontos totais sobre a renda do aposentado não podem ultrapassar 45% — sendo 35% para empréstimos, 5% para cartão de crédito consignado e 5% para cartão de benefício. Mas esse teto foi facilmente driblado pelas instituições financeiras envolvidas.
“Como é que conseguiram ultrapassar um limite legal imposto pelo Banco Central e pelo INSS?”, questiona o advogado.
Maria Lúcia representa milhares de aposentados que têm sido explorados por bancos e financeiras. Em resposta aos questionamentos da CNN, o Banco Central limitou-se a enviar links explicativos, sem comentar os abusos citados na reportagem.
A Febraban, por sua vez, mencionou a criação de um sistema de autorregulação do crédito consignado em 2020 e afirmou que mais de mil medidas administrativas foram aplicadas a correspondentes bancários, com 113 deles proibidos de atuar. Multas para bancos que descumprem as regras podem chegar a R$ 1 milhão.
Mesmo com todas essas medidas, Maria Lúcia segue vivendo com dois reais por mês, lutando contra o câncer e contra um sistema financeiro que deveria protegê-la — mas que a colocou no fundo do poço.