
Um Último Compasso de Amor: O Legado de Papa Francisco Sobre Casamento e Esperança
Em prefácio inédito, Francisco mistura tango, fé e realidade para reafirmar o amor como compromisso sagrado
Nos dias que seguiram sua morte, Papa Francisco foi lembrado de muitas formas: reformador, outsider, influenciador, modernizador. E ele foi mesmo um pouco de tudo isso. Mas, acima de qualquer título, foi o guardião de uma das instituições mais antigas do Ocidente, a Igreja Católica — ainda que com seu próprio jeito de fazer isso.
Essa essência aparece claramente em um de seus últimos textos, revelado agora pelo The New York Times. Trata-se de um prefácio escrito para um livro da Fundação YOUCAT — organização apoiada pelo Vaticano que traduz a doutrina católica para uma linguagem jovem e acessível, espalhada em 70 idiomas pelo mundo. O foco do livro é o amor e o casamento, e no prefácio, Francisco reafirma o que a Igreja defende: que o casamento é um laço sagrado, celebrado entre um homem e uma mulher.
Embora não tenha alterado nenhuma regra fundamental, o papa mais latino-americano que o mundo já conheceu deixa no texto sua marca registrada: a habilidade de tocar corações com simplicidade e sensibilidade.
Um tango chamado amor
Logo de início, Francisco entrega o tom: “Na minha terra natal, a Argentina, existe uma dança que amo profundamente: o tango”, escreve ele. Para ele, o tango — com toda sua disciplina e dignidade — é uma metáfora perfeita para o casamento. Um compromisso onde dois corpos e duas almas aprendem a caminhar juntos, em sintonia e respeito.
“Fico emocionado ao ver jovens se amando e tendo a coragem de transformar esse amor em algo grandioso: ‘Quero te amar até que a morte nos separe’. Que promessa extraordinária!”, escreveu. Assim, com charme e humanidade, Francisco reafirma a visão da Igreja sobre o casamento como um compromisso absoluto, sem resvalar para a dureza ou o moralismo.
O papa sempre teve um dom especial para se comunicar, recorrendo a metáforas, parábolas e até humor, muito ao estilo das histórias contadas por Jesus. Não é à toa que ele dizia que um bom padre precisava “cheirar a ovelhas” ou que a Igreja devia ser como um “hospital de campanha”, acolhendo quem mais sofre.
Entre a esperança e a dureza da vida
Francisco foi o papa que não desviou o olhar das realidades duras da vida: pobreza, doença, exclusão. Lavou os pés de presos, telefonou para desabrigados na Faixa de Gaza. Era, como muitos o chamaram, “o papa do povo”.
No prefácio, ele não idealiza o casamento: encara de frente a estatística amarga dos divórcios. “Quantos casamentos hoje falham após três, cinco, sete anos?”, questiona. E vai além: “Talvez até seus pais tenham começado com essa coragem, mas não conseguiram levar adiante.”
Essa capacidade de encarar a vida como ela é — sem dourar a pílula — foi uma das marcas de seu papado. Francisco entendeu que nem sempre os fiéis conseguiam seguir os rígidos mandamentos da Igreja sobre casamento, celibato ou relacionamentos homoafetivos. E tentou, dentro dos limites, tornar a Igreja um espaço mais acolhedor.
Logo no início de seu pontificado, celebrou o casamento de 20 casais, muitos dos quais já viviam juntos ou tinham filhos. Em 2016, abriu brechas para que católicos divorciados e recasados pudessem receber a comunhão. Em 2023, autorizou a bênção para casais do mesmo sexo.
Cada uma dessas atitudes é como uma linha bordada neste último prefácio — e na história de seu papado.
Um legado de fé no amor
Agora, com Francisco partindo, o prefácio que deveria ser publicado no novo livro da Fundação YOUCAT ficará como testemunho de seu olhar para o amor e para a vida.
Na carta, Francisco ecoa sua exortação apostólica de 2016, Amoris Laetitia, onde chamou a Igreja a ser mais próxima e humana. Ele também reforça a ideia de criar programas que preparem jovens para o casamento, como se prepara alguém para uma missão.
“Confiem no amor. Confiem em Deus. Confiem que vocês são capazes de viver uma aventura de amor que dure para sempre”, pede Francisco. “O amor quer ser eterno; amor com prazo de validade não é amor.”
E, no seu último sopro de humanidade, Francisco relembra que todo ser humano carrega o desejo de ser aceito sem reservas — e que quem não vive essa experiência pode carregar uma ferida invisível pela vida toda.
No fim, ele deixa um recado que é mais do que doutrina: é vida, é alma, é tango.